Verdade e delírio na religião
Tocantins 24h
O culto pegava fogo. O frenesi do povo crescia, estimulado por um pastor quase grisalho, engravatado e com bastante gel nos cabelos. Mesmo acostumado a ambientes pentecostais, estranhei o exagero dos gestos e das palavras. Concentrei-me para entender o que o pastor dizia em meio a tantos gritos. Percebi que ele, literalmente, dava ordens a Deus. Exigia que o Senhor honrasse a sua palavra, sem deixar nenhuma pessoa ali sem uma bênção. Enquanto os decibéis subiam, estranhei o tamanho da arrogância. A ousadia do líder contaminava os participantes. Todos pareciam valentes, cheios de coragem. Assombrei-me quando ouvi mais uma ordem vinda do púlpito: Chegou a hora de colocar Deus no canto da parede. Vamos receber o nosso milagre e exigir os nossos direitos. Foi a gota d’água. Levantei-me e fui embora.

Por *Ricardo Gondim

Os ambientes religiosos neopentecostais se tornaram alucinatórios. Eles geram fascínio por poder; almejam a capacidade de criar fieis com fé de viver em um mundo protegido e previsível. Por se sentirem onipotentes, os novos pentecostais buscam produzir uma realidade irreal. Para viabilizar esse mundo hipotético, televangelistas, apóstolos e bispos chegam ao cúmulo de se acharem gabaritados para comandar Deus. É próprio da religião oferecer segurança. Os neopentecostais, entretanto, mostram afoiteza redobrada em produzir uma existência garantida.

Em seus cultos, procuram eliminar as contingências. Não concebem a imprevisibilidade dos acidentes ou os contratempos da vida. Acreditam que o crente é capaz de domesticar o dia a dia e acabar com a possibilidade dos filhos adoecerem – se dirigem algum negócio  as empresas nunca vão ter problema e vão se safar caso estejam no ônibus que despenca no barranco. Multidões lutam por uma religião preventiva para poderem alcançar controle sobre os solavancos da vida e se tornarem aptos para transformar a aventura de viver em mar de almirante ou em céu de brigadeiro.

A ideia de um mundo sem percalços não passa de delírio. Por mais que se ore, por mais que se bata o pé, com ordens a Deus, o Eclesiastes adverte: O que acontece com o homem bom, acontece com o pecador; o que acontece com quem faz juramentos acontece com quem teme fazê-lo (9.2).

A pergunta insiste: por que os cultos neopentecostais lotam auditórios e ganham força na mídia? Pelo simples fato de prometerem aos fiéis o poder de controlar o amanhã, eliminar os infortúnios e canalizar as bênçãos de Deus para o presente. Quando oram, ousam gerar ambientes pretensiosamente poderosos, capazes de converter quaisquer problemas em felicidade.

Esta premissa merece ser contestada. Pedir a Deus para nunca nos contrariar, ou para nos poupar de acidentes, significa exigir que ele coloque todos em uma bolha de aço. A vida precisa ser contingente para ser significativa. Se tudo pode ocorrer de bom e de ruim, vivemos a realidade. Uma existência sem o imprevisto seria maçante. O perigo da tempestade e a chegada da bonança, a ameaça da doença e a paz da saúde, e a riqueza do instante junto com a iminência da morte, tornam o dia-a-dia fantástico.

A verdade não produz necessariamente felicidade. Verdade conduz à lucidez. O delírio, porém, tranquiliza, enquanto gera um falso contentamento. Muitos recorrem à religião porque desejam escapar da verdade. Sentem-se arrasados a médio prazo, todavia. A paz que a alucinação produz não se sustenta diante da concretude dos fatos.

Cedo ou tarde, a tempestade chega, o dia mau se impõe e o arrazoamento do religioso cai por terra. Jesus nunca fez promessas mirabolantes. Como não se alinhou aos processos alienantes da religião, o Nazareno jamais garantiu que o mundo dos seus seguidores seria seguro. Pelo contrário, avisou que os enviaria como ovelhas para o meio dos lobos e advertiu que muitos seriam entregues à morte por familiares. Sem rodeio, afirmou: No mundo vocês terão aflições. 

O Espírito conduziu Jesus ao deserto e o Diabo ofereceu uma vida segura, sem imprevistos. As três tentações foram ofertas de provisão, prevenção e poder. O Filho do homem rechaçou transformar pedra em pão, ter o socorro dos anjos e a riqueza do mundo. Ela os considerou mentira. O mundo que o Diabo prometeu não existe.

Muitos preferem acreditar nas ilusões. Fugir da crueza da vida é uma grande tentação. Em um primeiro momento, parece cômodo se exilar da realidade. É bom acreditar que riqueza, saúde e felicidade estão pertinho dos que sabem acessar o divino.

O mundo neopentecostal, portanto, desconecta, aliena. Seus seguidores vivem em negação por recusarem a sorte de todos os mortais. Daí, confundem esperança com deslumbre, virtude com onipotência mágica, culto com manipulação de forças esotéricas e espiritualidade com narcisismo religioso.

Os sociólogos têm razão: o crescimento numérico dos evangélicos não tende a arrefecer. Portanto, o debate sobre o fenômeno religioso deve ser qualitativo. O rastro de feridos e decepcionados que embarcaram nas promessas dos oportunistas da fé, já é maior do que se imagina.

A demanda por cuidado pastoral aumentará. Os egressos do avivamento evangélico perguntarão: Por que Deus nunca me ouviu?” ou “O que fiz de errado?. Será preciso responder: Não houve nada de errado com você. Deus não lhe tratou com indiferença. Você foi empurrado para um mundo delirante, que mistura fé com fantasia.

Soli Deo Gloria


* Ricardo Gondim é escritor e teólogo,  presidente  da Convenção Betesda Brasil.  E-mail: E-mail: ricardogondin2@gmail.com
أحدث أقدم

POLÍCIA

meio ambiente